Poder Constituinte

5.1 - Poder Constituinte

 

O Poder Constituinte é a manifestação soberana da suprema vontade política de um povo, social e juridicamente organizado.

 

A doutrina aponta a contemporaneidade da ideia de Poder Constituinte com a do surgimento de Constituições escritas, visando à limitação do poder estatal e a preservação dos direitos e garantias individuais.

 

2 TITULARIDADE DO PODER CONSTITUINTE

O titular do Poder Constituinte, segundo o abade Emmanuel Sieyès[1], um dos precursores dessa doutrina, é a nação, pois a titularidade do Poder liga-se à ideia de soberania do Estado, uma vez que mediante o exercício do poder constituinte originário se estabelecerá sua organização fundamental pela Constituição, que é sempre superior aos poderes constituídos, de maneira que toda manifestação dos poderes constituídos somente alcança plena validade se se sujeitar à Carta Magna.

Modernamente, porém, é predominante que a titularidade do poder constituinte pertence ao povo, pois o Estado decorre da soberania popular, cujo conceito é mais abrangente do que o de nação.

 

Assim, a vontade constituinte é a vontade do povo, expressa por meio de seus representantes. Celso de Mello, corroborando essa perspectiva, ensina que as Assembleias Constituintes não titularizam o poder constituinte. São apenas órgãos aos quais se atribui, por delegação popular, o exercício dessa magna prerrogativa.

 

 Manoel Gonçalves Ferreira Filho advoga que "o povo pode ser reconhecido como o titular do Poder Constituinte mas não é jamais quem o exerce. É ele um titular passivo, ao qual se imputa uma vontade constituinte sempre manifestada por uma elite". Assim, distingue-se a titularidade e o exercício do Poder Constituinte, sendo o titular o povo e quem exerce aquele que, em nome do povo, cria o Estado, editando a nova Constituição”.

 

O Poder Constituinte é uma faculdade que existe de poder elaborar e aprovar uma constituição, podendo ser inicial ou superveniente. É considerado inicial o poder constituinte quando se exerce pela primeira vez e onde o Estado aparece a aprovar um poder inicial, autónomo e omnipotente. Inicial porque não existe, antes dele, nem de facto nem de direito, qualquer outro poder. É nele que se situa, por excelência, a vontade do soberano (instancia jurídico-política dotada de autoridade suprema).

 

É um poder autónomo porque só a ele compete decidir como e quando se deve dar uma Constituição à Nação. É um poder omnipotente incondicionado: o poder constituinte não está subordinado a qualquer regra de forma ou fundo. Como pudemos constatar, na sua formação clássica, o poder constituinte não consentia quaisquer limites de forma ou de conteúdo. Hoje o poder constituinte não pode criar uma Constituição a partir do nada, não inventa novos valores aos quais a Constituição terá de se ajustar.

 

Encontra sim, uma ordem pré-positiva, um conjunto de direitos fundamentais aos quais o poder constituinte está amarrado. Há porem um poder: o poder de modificar a Constituição em vigor segundo as regras e processos nela prescritos, que é também considerado como constituinte, embora seja instituído pela própria Constituição. Este poder, o constituinte derivado, poder de revisão, distingue-se do poder constituinte originário. O poder de revisão Constitucional é por isso, um poder constituído tal como o poder legislativo.

 

 

LEGITIMIDADE E CONTEÚDO DA CONSTITUIÇÃO

 

Uma coisa é o título de legitimidade ou forma de produção da Constituição e outra é o seu conteúdo ou a sua forma e o sistema de governo que consagra. Importa não confundir Constituição de origem democrática ou autocrática com Constituição de conteúdo democrático ou autocrático.

 

Não é o poder constituinte, o criador da Constituição que dá garantia de que forma o governo instituído é ou não democrático ou autocrático. Diz-se, por vezes, que poder constituinte do povo, deve prevalecer sempre sobre a Constituição existente. Contudo tem de se tomar em conta as condições em o poder constituinte é actualizado, as determinantes históricas de ruptura ou de transição constitucional. É preciso atender aos riscos para a segurança jurídica advenientes da diminuição ou esvaziamento da força normativa da Constituição.

 

E, quando se invoca o principio democrático, cabe verificar se é o povo que, real e livremente, quer a mudança, de que maneira e com que meios. Em democracia que se pretenda um Estado de Direito, mudar de governo não equivale a mudar de Constituição e de regime. Nem uma maioria de governo pode arrogar-se em maioria constitucional para conformar a Constituição à sua Constituição e perpetuar-se no poder.

 

Pelo contrário, e por conter as regras do jogo do regime, a Constituição tem perdurar para além da sucessão de governos e de partidos, porque a todos tem de se servir de referência institucional e a todos tem de oferecer um quadro de segurança para o presente e futuro.

 

OS LIMITES DO PODER CONSTITUINTE

O poder constituinte antecede e é superior aos poderes ditos constituídos - legislativo, o executivo e o judicial pois, é a constituição que os define e enquadra, não podendo ser exercidos senão no âmbito da Constituição e as decisões e as normas que resultem desse exercício não podem contrariar o sentido normativo da Constituição.

 

Todavia esta asserção não pode querer significar que o poder constituinte equivale a um poder soberano absoluto e que pode dar à Constituição todo e qualquer conteúdo, estando sujeito, o poder

constituinte, a limites. As posições dos autores sobre o assunto são as mais diversas, mas podemos dizer que o poder constituinte é limitado pelas estruturas políticas, sociais, económicas e culturais dominantes da sociedade, bem como pelos valores ideológicos que sejam portadores.

 

Distinguem-se três tipos de limites matérias do poder constituinte que são:

 

Limites transcendentes: são aqueles que se antepõe e impõem à vontade do Estado e demarcam a esfera de actuação do mesmo, provindo dos imperativos do Direito Natural (direitos próprios a dignidade da pessoa humana), donde por exemplo, seria inválido ou mesmo ilegítimo decretar normas constitucionais que criassem desigualdades em função da raça ou que instaurassem a pena de morte;

 

Limites imanentes: são os limites ligados à configuração do Estado, reportando-se a soberania do Estado bem como a forma do Estado, não se aceitando por exemplo que um Estado soberano e com intenções de permanece-lo aceite a anexação a um outro Estado, ou ainda, num Estado federal que pretenda continuar a sê-lo, passe a estado unitário;

 

Limites heterónimos: podem ser mais ligados a outros ordenamentos jurídicos, ou seja, compreendem os limites heterónimos do Direito Internacional que correspondem a limitação do conteúdo da Constituição por virtude dos deveres assumidos pelo Estado para outros Estados e para a comunidade internacional. Ou ainda os limites heterónimos do Direito Interno, constituído pelas limitações recíprocas, em união federativa, entre poder constituinte federal e os poderes constituintes dos Estados federados, em que aquele deve respeitar a existência destes e assegurar a participação

do Estado nos órgãos e nos actos jurídicos principais a nível central.

 

O PROCEDIMENTO CONSTITUINTE

A legitimação através do procedimento constituí uma importante dimensão para se aferir da "bondade" de uma constituição. Por exemplo, uma constituição "imposta" e "posta" por um "ditador", um "chefe", um "grupo", uma "classe", uma "religião", uma "raça", poderá transportar inequívocas dimensões de justiça material, mas nem por isso deixará de estar procedimentalmente enfermada. Isto leva-nos a articular os dois modelos de relação entre as dimensões procedimentais e as dimensões materiais do poder constituinte.

No modelo procedimental a justiça do resultado (= justiça da constituição) depende exclusivamente do procedimento seguido para a feitura da constituição. Se o procedimento for justo, será justo também o conteúdo da constituição. Em termos práticos, isto significaria que bastava ser correcto o procedimento constituinte (por exemplo: assembleia constituinte, eleita democraticamente, que elaborou e aprovou, de acordo com regras regimentais prévias, o texto constitucional) para termos uma constituição materialmente justa.

 

No modelo substantivo ou material, independentemente do procedimento, existem medidas autónomas para se aferir do "justo" constitucional, sendo o procedimento apenas um dos meios para se alcançarem soluções substantivas justas.

 

A ideia de "legitimidade da Constituição" aponta, fundamentalmente, para a necessidade da bondade intrínseca da lei fundamental. Isso não significa, porém, que a "legitimidade através do procedimento" não tenha um valor constituinte específico.

 

As formas do procedimento constituinte

1. Procedimento constituinte directo e procedimento constituinte representativo

Alguns autores como Sayes admite a existência de Assembleias especiais, encarregues de elaborar a Constituição e não assembleias legislativas ordinárias: a lógica subjacente à distinção entre poder constituinte e poderes constituídos exigirá que o exercício do poder constituinte não possa pertencer a uma assembleia legislativa ordinária[2] (poder constituído). O procedimento representativo pode considerar-se o procedimento clássico de elaboração de constituições em Mocambique (1975, 1990 e 2004).

 

Fala-se de procedimento constituinte directo quando o projecto de lei constitucional obtém validade jurídica através de uma aprovação directa do povo (plesbicito, referendo); designa-se por procedimento constituinte indirecto ou representativo a técnica da elaboração de constituição na qual a participação do povo se situa no momento da eleição de representantes para uma assembleia constituinte, cabendo a estes representantes a deliberação de aprovação da lei constitucional. Na forma representativa pura cabe à assembleia constituinte elaborar e sancionar a constituição. Mas estas duas funções podem distribuir-se de forma diferente. Desde logo, por órgãos representativos diversos: uma constituição pode ser feita por uma assembleia constituinte federal, exigindo-se, posteriormente, a ratificação das assembleias dos estados (cfr. artigos 5. ° e 7. ° da Constituição dos Estados Unidos da América).

 

2. Procedimento misto

Ainda com base na diferenciação dos momentos de elaboração e ratificação, podemos apontar um processo misto, onde se combinam os elementos directos com elementos representativos. O povo elege uma assembleia constituinte para elaborar uma constituição (procedimento representativo); a ratificação jurídica da constituição caberá ao povo que se pronunciará através de plebiscito ou de referendo sobre o texto constitucional (procedimento directo)[3]. Designa-se esta técnica por técnica de assembleia constituinte não soberana.

 

3. Procedimento constituinte monárquico

Nos regimes monárquicos, o rei reservava para si o direito de dar a constituição aos súbditos. Uma forma mista pode resultar da articulação de dois princípios diversos: o princípio monárquico e o princípio democrático. São as chamadas constituições dualistas ou pactuadas, através das quais se efectiva um compromisso entre o rei e assembleia representativa (exemplos: a Constituição de Wiirtemberg de 1819; a Constituição pactuada de Luís Filipe de 1830.

 

GOUVEIA, J Bacelar, Manual de Direito Constitucional, Vol. I, 2aEdiçao, 2007;

CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição, Livraria Almedina, Coimbra, 2003;

MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 5ª Edição, Coimbra Editora, 2003



[1] Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1836) é o autor do livro Qu’ést-ce que le tiers État? (O que é o terceiro Estado?), verdadeiro manifesto da Revolução Francesa, onde expõe as reivindicações da burguesia, definindo-a como a nação e, consequentemente, titular do poder constituinte.

[2] MIRANDA, Jorge, Tomo I (op. Cit.) citando CARRÉ DE MALBERG, Contribution, cit., Vol. II, p. 508.

[3] Jorge Miranda dá exemplos da Constituição Francesa de 1795 ou do Ano III e, em tempos mais próximos, a Constituição da IV República. Foi também o processo seguido pelas Conventions americanas que elaboraram um projecto de constituição sujeito a ratificação do povo.